Entrevista com Guillermo Fesser

"As crianças aprendem que têm raízes espanholas e começam a apreciá-las e a desfrutar delas"

Sociedade Arte Entrevistas

 

Setembro de 2017.    Tempo de leitura: 9 minutos

Conversamos com Guillermo Fesser, o autor do livro que relembra a importante ajuda do exército espanhol ao de Washington (EUA) na conquista da independência.

Em poucas palavras, quem foi Bernardo de Gálvez?

Quando os patriotas das 13 colônias declararam sua independência da Inglaterra, dois terços do atual território dos Estados Unidos estavam sob domínio espanhol e era chamado de Nova Espanha. A capital era Nova Orleans e seu governador, durante a guerra da independência, era o malaguenho Bernardo de Gálvez. Antes disso, Gálvez tinha capitaneado os Dragones de Cuera (Dragões de Couro): a primeira versão da Sétima Cavalaria dos filmes ocidentais espanhóis. Os Dragões patrulhavam o caminho real que ia da Flórida à Califórnia, defendendo os colonos dos ataques dos Apaches e Comanches. Diziam que eram de Cuera por causa do colete de sete camadas de couro de veado, usado como armadura de proteção das flechas. Embora atualmente o combate possa parecer muito desigual — os indígenas com flechas e os vaqueiros com mosquetes —, na época, era necessário carregar as armas de fogo com pólvora depois de cada disparo e, nesse intervalo de um minuto, os nativos tinham tempo para disparar três flechas.

É verdade que, sem a ajuda do exército hispânico liderado por Bernardo de Gálvez, os Estados Unidos não teriam conseguido a independência em 1783?

Quando os patriotas declararam guerra à Inglaterra e à Escócia, havia um pequeno problema: não tinham exército, armamento e nem meios para fabricá-los. Também não tinham dinheiro para pagar seus soldados, nem fábrica para cunhar moedas, nem alimentos para as tropas — especialmente o gado que os acompanhava e podiam deixá-los pelo caminho. Eles também não tinham uniformes, cobertores para se agasalhar e nem medicamentos para atender os feridos. Além disso, eles estavam cercados.

Por mar, não seria possível chegar ajuda em Washington, porque os portos do Atlântico estavam bloqueados pela Royal Navy. Ao norte, os ingleses controlavam o Canadá. E, ao sul, tinham a Flórida, que a Espanha tinha perdido na Guerra dos Sete Anos. E, ao oeste, os montes Apalaches, com uma grande quantidade de tribos indígenas dispostas a lutar contra os invasores europeus, eram intransitáveis. A única possibilidade era a ajuda da vizinha Nova Espanha. Nova Orleans está na foz do rio Mississipi, e Gálvez, por meio deste rio, e depois pelo rio Ohio, enviou milhares de cobertores de Palência e Zamora (ambas na Espanha), milhares de uniformes fabricados em Soraluze (Guipúscoa, também na Espanha), milhares de mosquetões e centenas de canhões, milhões de dólares espanhóis e toneladas de medicamentos — principalmente quinino do Peru para salvar o exército americano da malária.

Como surgiu a ideia de escrever um livro infantil sobre Bernardo de Gálvez?

Porque acredito que os adultos não estão dispostos a ouvir sermões. Hoje, eu digo que a ajuda da Espanha foi crucial e me dizem que sim, como o avô do filme Casamento Grego quando diz que tudo vem da Grécia. Neste país, todas as pessoas vendem sua história. Hoje é minha vez. Amanhã, vem um alemão contar que o hambúrguer é seu. No dia seguinte, um italiano afirma que Colombo era seu conterrâneo, mas, no final, tudo fica como estava. Eles continuam pensando que os anglo-americanos são a última Coca-Cola no deserto.

Mas as crianças são diferentes. Na escola, com seriedade, bem explicado na sala de aula por meio do meu livro Conoce a Bernardo de Gálvez — que já entrou na grade curricular de muitas escolas dos Estados Unidos —, as crianças aprendem que têm raízes espanholas e começam a apreciá-las e a desfrutar delas. Quando chegar o aniversário de 250 anos da Declaração da Independência — que está prestes a acontecer — meus alunos terão crescido com outra mentalidade, sabendo que, sem a contribuição das pessoas que falam espanhol, esse país não teria sido independente. A partir desse momento, talvez, nós — os latinos — comecemos a ocupar os cargos de poder que nos pertencem: somos 20% da população, mas nos negam esse direito.

O livro também conta a história de Teresa Valcarce. É verdade que essa espanhola conseguiu, em 2014, que o quadro de Bernardo de Gálvez fosse pendurado no Capitólio, sob o mandato de Barack Obama?

O livro é, na realidade, a história de como o Congresso, ao conquistar a independência, prometeu pendurar um quadro de Gálvez no Capitólio como uma homenagem à contribuição da Espanha para a independência. Mas a promessa nunca foi cumprida! O documento que prova isso foi encontrado nos arquivos nacionais de Washington pelo professor Manuel Olmedo. Ele foi publicado no Diario Sur pela jornalista Regina Sotorrío, e Tere, uma espanhola residente em Washington, leu a notícia e comentou com o senador Menéndez, que não tinha a menor ideia da promessa. Ele, por sua vez, pendurou o quadro no Senado. Logo depois, Obama concedeu a cidadania honorífica norte-americana à Menéndez.

Eu preferi contar essa história para que as crianças se sintam mais próximas dela e entendam que, para ser herói, não é necessário usar peruca branca como Gálvez. É possível se tornar herói sendo uma cidadã normal como Tere e conseguir que se faça justiça.

Qual é o público que você desejava impactar com esse livro: os norte-americanos anglo-saxônicos ou os latino-americanos e espanhóis residentes nos Estados Unidos?

Há duas versões do livro: a espanhola, para leitura nas aulas de espanhol das escolas bilíngues do ensino fundamental, e Get to Know Bernardo de Gálvez, que é estudado na aula de história do ensino secundário. É muito importante que nós — espanhóis, hispânicos, latinos ou como queiram nos chamar — conheçamos nossa própria história e nos sintamos orgulhosos de nossas contribuições. Mas também é fundamental que os que não falam espanhol saibam disso para que saibam que não chegamos ontem e que não planejamos sair amanhã. Também é importante que saibam que estamos aqui desde antes do início, que nossa contribuição foi decisiva e que pertencemos aos Estados Unidos tanto quanto a qualquer outra pessoa.

As crianças não são fãs de palestras como os adultos. Como você conseguiu captar a atenção delas? E qual foi a resposta delas?

Na realidade, eu não falo sobre Gálvez. Eu explico como eu fiz um livro ilustrado sobre Gálvez, para que eles possam fazer, se quiserem, seu próprio livro ilustrado... ou seu próprio filme, porque, no final das contas, um livro ilustrado é um storyboard. Explico o que acontece quando colocamos a câmera muito alta ou muito baixa, se a luz aumenta ou se filmamos no escuro. Explico também que o skinny face que podem fazer nas suas selfies do celular já era feito pelos pintores há centenas de anos em suas pinturas, pois eles recortavam o nariz de um rei ou aumentavam o tamanho das pérolas do colar de uma dama. Também mostro o site que criamos com a ajuda da Fundação Conselho Espanha-Estados Unidos, www.conocegalvez.com, onde existe uma grande quantidade de jogos em que elas podem aprender e se divertir ao mesmo tempo. E, pelo caminho, menciono que, sem o exército composto por africanos livres, nativos americanos, espanhóis e crioulos que o general Bernardo de Gálvez comandava, Washington ainda estaria tentando derrotar os ingleses.

Como surgiu sua colaboração com a Iberdrola?

Eu moro em Nova York há 10 anos e, de lá, conto histórias para o Carlos Alsina no Onda Cero (uma emissora de rádio espanhola) todas as sextas-feiras no programa Más de Uno. Minha curiosidade surgiu quando fiquei sabendo que ia ser montada a exposição Memória Recuperada em Nova Orleans, com patrocínio da Iberdrola. A exposição revelava uma parte da história comum da Espanha e dos Estados Unidos, desconhecida por muita gente nos dois lados do Atlântico. Entrevistei e aprendi muitas coisas novas com curador da exposição, José Manuel Guerrero. Depois, tive uma surpresa quando soube que ele tinha incluído meu livrinho na exposição por ser o único livro de texto nas escolas dos EUA que explica a contribuição espanhola na Guerra de Independência americana. A partir daí, mantivemos contato e, quando a exposição foi transferida para Washington, ele me pediu para contribuir dando palestras nas escolas que visitariam a exposição. E aqui estou, levando uma surra magistral, mas por uma causa que vale muito a pena. Eu sempre durmo feliz nos dias em que um aluno latino entra triste, se sentindo cidadão de segunda por tudo o que ouve, mas sai de minha apresentação com a cabeça erguida.

Você mora há muitos anos nos Estados Unidos, mais especificamente no estado de Nova York. Qual é a opinião deles sobre a Espanha?

A Espanha agrada aos norte-americanos. Está vendida. Sold out. Só dizem maravilhas da Espanha e dos espanhóis. Gostam de tudo: da gastronomia, do clima, da história, da amabilidade das pessoas etc. O que não entendem, por exemplo, é quando eles vão comprar um ingresso, em vez de uma bilheteria da Espanha, encontram 27. Alguém que diz: "ah não, nós só vendemos chouriço de sangue de porco de Burgos"; outro que diz: "ah não, nós só somos Barcelona"; outro: "nós só vendemos vinho de Madri". A famosa Marca Espanha... Não precisamos de nenhum gênio para inventá-la, porque nós, espanhóis, inventamos sozinhos. O que necessitamos é aprender a vendê-la juntos em vez de perdermos tempo vendendo pedacinhos.

Você tem planos de continuar promovendo a cultura hispânica nos Estados Unidos?

Tenho uma lista de espera de escolas de todos os cantos do mapa dos Estados Unidos. Meu objetivo agora é conseguir que as próprias escolas e professores conheçam o site e possam trabalhar o tema dentro das salas de aula, sem a necessidade da minha presença física. Gosto muito de viajar, mas não posso viver como estou agora, quase um mês e meio fora de casa.

De qualquer forma, penso em escrever um novo livro contando a história do burrinho de Zamora, cujo nome era Presente Real, enviado pelo rei Carlos III para Washington e que, após ter cruzado com uma égua, originou as famosas mulas norte-americanas que são hoje, por exemplo, o símbolo do bourbon de Kentucky e se tornaram uma lenda durante a Primeira Guerra Mundial.
 

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